sábado, 2 de abril de 2011

: Sobre Exílios e Canções

Houve um tempo no qual a liberdade não era vista e tratada apenas como algo banal em nossas vidas. Nos anos de chumbo, o céu não era a única fronteira a se nublar diariamente. Homens sendo lobos dos próprios homens em uma ciranda de poder e manipulação. Quem sobrevive a tamanhas torturas, muito mais que físico-corporais sobreviveria também às atrocidades psicológicas tão fortes nas relações humanas? Esta é uma entre tantas outras perguntas a não silenciar. Em um período tão efervescente a poesia tinha voz bem mais nítida e clara. Trazia em suas linhas e entrelinhas uma tentativa de resgatar os valores éticos e morais tão cruelmente dilacerados. Imagino quão difícil era para poetas como Thiago de Mello perceberem-se obrigados a se exilar. Não me refiro somente ao exílio político, mas também à clausura imposta a alma por circunstâncias tão devastadoras. Há um revigorante poema de nome Os Estatutos do Homem, o qual nos convida a uma importante reflexão: até quando nós mesmos vamos nos submeter a tão avassaladores exílios de pensamento ? Uma sugestão: não se tranque em claustros cuja existência possa impedi-lo de exercer sua maior conquista – a Liberdade. Com uma certeza: O show tem que continuar, como cantam João Bosco e Zizi Possi a letra de Aldir Blanc – O Bêbado e o Equilibrista. (Cique e ouça aqui: youtube).

Com vocês, Thiago de Mello

Os Estatutos do Homem
(Ato Institucional Permanente)

A Carlos Heitor Cony

Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único:
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.
Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.


Artigo XI

Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.


Artigo XII

Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

Santiago do Chile, abril de 1964

Fonte: Jornal da Poesia
Música para leitura - ouça: Chevaliers de sangreal

Um comentário:

  1. Esse poema é muito bom! Lembro que o utilizei em um trabalho de história na 8ª série...Adorei! Infelizmente, so pessimista quanto a questão da liberdade político-social hoje em dia: não acredito que o povo possui maior liberdade agora do que possuia em tempos de ditadura militar. Agora pode-se escolher os representantes mas, não é uma escolha livre, penso. A livre escolha, creio, deriva de reflexão acerca dos princípios democráticos, dos objetivos da sociedade, das direções que os legisladores/gestores devem seguir para não desviar desse objetivo...aí sim, a escolha (pensada) do candidato faria sentido. Costumo dizer que vivemos em uma ditadura muito mais eficiente, pois disfarçada de democracia...

    Ahhh acho que o pressuposto paa o pedido de falência da poesia seria a ausencia, injustificada, de sentimento...=P Hehehe

    Ótimo post!

    ResponderExcluir

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